quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Era uma vez... "Maria Grampinho"


Goiás Velho como toda cidade histórica possui seus personagens folclóricos, aqueles que se destacavam de alguma forma diferente e criativa. Uma delas era Maria da Purificação mais conhecida por Maria Grampinho, uma andarilha descendente de escravos que tinha o costume de agregar a sua roupa tudo o que encontrava pela frente como plásticos, retalhos e botões velhos. Também usava muitos grampos no cabelo e por isso ganhou este apelido. Maria Grampinho morou durante o final da década de 40, no porão da casa de Cora Coralina, dormindo ao lado de uma bica d água, era uma mulher simples e que fazia suas próprias roupas. Cora Coralina a tinha como amiga e até lhe dedicara um poema. Hoje Maria Grampinho virou boneca e ajuda a movimentar a economia da cidade.


Coisas de Goiás: Maria


Maria. Das muitas que rolam pelo mundo.

Maria pobre. Não tem casa nem morada.

Vive como quer.

Tem seus mundos e suas vaidades. Suas trouxas e seus botões.

Seus haveres. Trouxa de pano na cabeça.

Pedaços, sobras, retalhada.

Centenas de botões, desusados, coloridos, madre – pérola, louça,

Vidro, plástico, variados, pregados em tiras pendentes.

Enfeitando. Mostruário.

Tem mais, uns caídos, bambinelas, enfeites, argolas, coisas dela.

Seus figurinos, figurações, arte decorativa,

criação, inventos de Maria.

Maria Grampinho, diz a gente da cidade.

Maria sete saias, diz a gente impiedosa da cidade.

Maria. Companheira certa e compulsada.

Inquilina da casa velha da ponte.


Trecho de poesia retirado do livro “Vintém de Cobre: meias confissões de aninha” da Global Editora e Distribuidora Ltda.



bica dágua e.....

vista do porão onde vivia Maria Grampinho

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Aninha e suas pedras





Não te deixes destruir...

Ajuntando novas pedras

e construindo novos poemas.

Recria tua vida, sempre, sempre.

Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.

Faz de tua vida mesquinha

um poema.

E viverás no coração dos jovens

e na memória das gerações que hão de vir.

Esta fonte é para uso de todos os sedentos.

Toma a tua parte.

Vem a estas páginas

e não entraves seu uso

aos que têm sede.

Cora Coralina (Outubro, 1981)



Sobre minha visita a Goiás Velho e as fotos do Blog

Era dezembro e havia trabalhado até o dia 20 como professor substituto no lugar de uma professora que pedira licença, estava a algumas semanas de ir à Brasília com meus pais visitar nossos parentes para passar o natal e o ano novo. Como conhecer Goiás Velho era um dos nossos planos, estava excitado e armado com minha câmera fotográfica a pegar todos os detalhes da estrada. Foi um dia de viagem de minha cidade Artur Nogueira no interior de São Paulo à Brasília, passamos alguns dias e quando chegou o fim de semana decidimos fazer a tão esperada jornada que como já disse era um plano da família. Foi um longo caminho no qual dirigimos por um trecho da Belém – Brasília, completamente esburacada e mal sinalizada, foi sofrível, mas no final valeu a pena. Entrar em Goiás Velho é como voltar no tempo, os casarões, capelas e igrejas revelam os anos em que a cidade viveu o auge da exploração do ouro. Sua história se confunde com a própria história do estado de Goiás, e algumas mostras de sua riqueza, talhadas em ouro nos séculos passados, estão preservadas em locais como o Museu das Bandeiras, construído em 1761; o Colégio Sant'Ana, fundado em 1879 pelas irmãs dominicanas; a igreja Nossa Senhora d'Abadia, erguida pelos escravos em 1790; e a Casa da Fundição, datada de 1752, onde se fundia o ouro extraído das minas.

Como já era muito tarde quando chegamos e estávamos exaustos da viagem, decidimos passar à noite e assim poder conhecer melhor a cidade. A vista da pousada era privilegiada, de frente para a casa velha da ponte e também dava para ver os grandes morros que cercam a cidade os mesmos que a impediram de crescer fazendo com que a capital se deslocasse para Goiânia. Muitas das fotos usadas neste blog são às que tirei durante minha estadia lá com exceção das que mostram o interior e os objetos pessoais da casa de Cora Coralina pois não era permitido tirar fotos dentro da casa, e há outras que é claro foram upadas da internet. As fotos do interior da casa estão à venda no museu, assim como camisetas, livros e cartões postais. Se algum dia você estiver de passagem por Goiás não deixe de visitar Goiás Velho e a casa desta poetisa que assim como a cidade é recheada de memórias e sensações de um tempo passado.

Para maiores informações sobre a cidade de Goiás Velho acesse o link http://www.vilaboadegoias.com.br/index.htm


Vista panorâmica de Goiás Velho

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

"E com a palavra ...Carlos Drummond"



"Minha querida amiga Cora Coralina:

Seu Vintém de Cobre é, para mim, moeda de ouro, e de um ouro que

não sofre as oscilações do mercado. É poesia das mais diretas e

comunicativas que já tenho lido e amado. Que riqueza de experiência

humana, que sensibilidade especial e que lirismo identificado com

as fontes da vida! Aninha hoje não se pertence. É patrimônio de nós

todos, que nascemos no Brasil e amamos a poesia (...).

Não lhe escrevi antes, agradecendo a dádiva, porque andei malacafento

e me submeti a uma cirurgia. Mas agora, já recuperado, estou em

condições de dizer, com alegria justa: Obrigado, minha amiga!

Obrigado, também, pelas lindas, tocantes palavras que escreveu para

mim e que guardarei na memória do coração.

O beijo e o carinho do seu

Drummond."

Andrade, Carlos Drummond de [Rio de Janeiro, 7 out. 1983]. Carta de Drummond. In: Coralina, Cora. Vintém de cobre : meias confissões de Aninha. 4. ed. p. 23.



Cora Coralina, de Goiás.

“Este nome não inventei, existe mesmo, é de uma mulher que vive em Goiás: Cora Coralina.

Cora Coralina, tão gostoso pronunciar esse nome, que começa aberto em rosa e depois desliza pelas entranhas do mar, surdinando musica de sereias antigas e de Dona Janaína moderna

Cora Coralina, pra mim a pessoa mais importante de Goiás. Mais do que o governador, as excelências parlamentares, os homens ricos e influentes do Estado. Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua invenção, e identificada com a vida como é por exemplo, uma estrada.

Na estrada que é Cora Coralina passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os miseráveis de hoje. O verso é simples, mas abrange a realidade vária. Escutemos:

“Vive dentro de mim/ uma cabocla velha/ de mau olhado,/ acocorada ao pé do borralho, olhando pra o fogo”. “Vive dentro de mim/ a lavadeira do rio vermelho. Seu cheiro gostoso dágua e sabão”. “Vive dentro de mim/ a mulher cozinheira. Pimenta e cebola. Quitute bem feito”. “Vive dentro de mim/ a mulher proletária. / Bem linguaruda, / desabusada, sem preconceitos”. “Vive dentro de mim/ a mulher da vida. / minha irmãzinha... / tão desprezada, / tão murmurada...”.


Todas as vidas. E Cora Coralina as celebra todas com o mesmo sentimento de quem abençoa a vida. Ela se coloca junto aos humildes, defende-os com espontânea opção, exalta-os, venera-os. Sua condição humanitária não é menor do que sua consciência da natureza. Tanto escreve a Ode às Muletas como a Oração do Milho. No primeiro texto foi a experiência pessoal que a levou a meditar na beleza intrínseca desse objeto(“Leves e verticais. Jamais sofisticadas. / Seguras nos seus calços / de borracha escura. Nenhum enfeite ou sortilégio”). No segundo poema, o dom de aproximar e transfigurar as coisas atribui ao milho estas palavras: “Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece. / sou o cocho abastecido donde rumina o gado. / sou a pobreza vegetal agradecida a vós, Senhor.”.


Assim é cora coralina: um ser geral, “coração inumerável”, oferecido a estes seres que são outros tantos motivos de sua poesia: o menor abandonado, o pequeno delinqüente, o presidiário, a mulher-da-vida. Voltando-se para o cenário goiano, tem poemas sobre a enxada, o pouso de boiadas, o trem de gado, os bonecos e sobrados, o prato azul-pombinho, último restante de majestoso aparelho de 92 peças, orgulho extinto da família. Este prato faz jus a referencia especial, tamanha a sua ligação com usos brasileiros tradicionais, como o rito da devolução: “Ás vezes, ia de empréstimo / à casa da boa Tia Norita. / E era certo no centro da mesa/ de aniversário, com sua montanha / de empadas bem tostadas / No dia seguinte, voltava, / conduzido por um portador/ que era sempre o abdenago, preto de valor, / e, melhor cheirinho / de doces e salgados. / tornava a relíquia para o relicário...”.


Relicário é também o sortido deposito de memórias de Cora Coralina. Remontando a infância, não a ornamenta com flores falsas: “éramos quatro as filhas de minha mãe. / entre elas ocupei sempre o pior lugar”. Lembra – se de ter sido “triste, nevorsa e feia. / Amarela de rosto empalamado. / de pernas moles, caindo à toa”. Perdera o pai muito novinha. Seus brinquedos eram coquilhos de palmeira, caquinhos de louça, bonecas de pano. Não era compreendia. Tinha medo de falar. Lembra com amargura essas carências, esquecendo-se de que a tristeza infantil não lhe impediu, antes lhe terá preparado a percepção solidária das dores humanas, que o seu verso consegue exprimir tão vivamente em forma antes artesanal do que acadêmica.


Assim é Cora Coralina, repito: mulher extraordinária, diamante goiano cintilando na sua solidão e que pode ser contemplado em sua pureza no livro Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. Não estou fazendo comercial da editora, em época de festas. A obra foi publicada pela universidade federal de Goiás. Se há livros comovedores, este é um deles. Cora Coralina, pouco conhecida dos meios literários fora de sua terra, passou recentemente pelo Rio de Janeiro, onde foi homenageada pelo Conselho Nacional de Mulheres do Brasil, como uma das 10 mulheres que se destacaram durante o ano. Eu gostaria que a homenagem fosse também dos homens. Já é tempo de nos conhecermos uns aos outros sem estabelecermos critérios discriminativos ou simplesmente classificatórios.

Cora Coralina, um admirável brasileiro. Ela mesma se define: “Mulher sertaneja, livre, turbulenta, cultivadamente rude. Inserida na Gleba. Mulher terra. Nos meus reservatórios secretos um vago sentimento de analfabetismo”. Opõe a morte “aleluias festivas e os sinos alegres da Ressurreição. Doceira fui e gosto de ter sido. Mulher operária”.

Cora Coralina: gosto muito deste nome, que me invoca, me bouleversa, me hipnotiza, como no verso de Bandeira."

Carlos Drummond de Andrade

(Jornal do Brasil, cad. B, 27 – 12 – 80)





segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Versos e Doces: Biografia de Cora Coralina

No dia 20 de agosto de 1889 nasceu Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, na antiga Villa Boa de Goiáz. Filha de Jacinta Luíza do Couto Brandão Peixoto e do desembargador Francisco de Paula Lins dos Guimarães Peixoto. Casou-se com Cantídio Tolentino de Figueiredo Bretas. Teve quatro filhos: Paraguassu, Cantídio Filho, Jacinta e Vicência, 15 netos e 29 bisnestos.


Sua carreira literária teve inicio aos 14 anos, “tragédia na roça” foi seu primeiro conto, publicado em 1910 no Anuário Histórico, Geográfico e Descritivo do estado de Goiás, do prof. Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Em 1903 já escrevia poemas sobre o seu cotidiano, tendo criado em 1908 com duas amigas o jornal de poemas feminino A Rosa. Saiu de Goiás para morar no interior de São Paulo em 25 de novembro de 1911, morando em Jabuticabal, Andradina e depois na capital paulista. Na década de 30 fez colaborações para o jornal O Estado de São Paulo, foi vendendora da Livraria José Olympio na grande capital e proprietária do estabelecimento Casa dos Retalhos em Penápolis interior de São Paulo. Viveu por durante 45 anos fora de Goiás. Voltou em 1956, indo morar na Casa Velha da Ponte. Foi quando iniciou a atividade que desenvolvera por mais de vinte anos, a profissão de doceira. O seu reencontro com a cidade e as histórias de sua formação aprimorou o seu espírito criativo onde ficou conhecida também como Aninha da Ponte da Lapa.


Aos 50 anos foi quando decidiu não ser mais Ana: "Em Goiás existiam muitas Anas por causa da padroeira da cidade". "E eu não queria ser xará. Cora vem de coração, e coralina é a cor vermelha", esta é a sua explicação para a escolha de seu pseudônimo. Cora Coralina faleceu em Goiânia a 10 de abril de 1985 e seu corpo foi levado para a cidade de Goiás, onde jaz no cemitério São Miguel. Logo após sua morte, seus amigos e parentes uniram-se para criar a Casa de Coralina, que mantém um museu com objetos da escritora.


Cora teve uma carreira literária não muito comum tendo seu primeiro livro editado somente em 1965, já com 75 anos de idade: Estórias dos Becos de Goiás e Estórias Mais, pela Editora José Olímpio – São Paulo. Ficou conhecida nacionalmente quase aos 90 anos, quando suas obras chegaram até as mãos de Carlos Drummond de Andrade. Drummond a definiu na época como “a pessoa mais importante de Goiás”. A espontaneidade, o cotidiano e as imagens que retrata do povo de seu estado são traços marcantes em sua escrita. Cora Coralina costumava se considerar uma “mulher atual inserida no seu tempo”. Sua obra possui profundidade e uma beleza singular, sendo considerada por vários autores um registro histórico-social do século XX.

Obras de Cora Coralina

- Estórias da Casa Velha da Ponte
- Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais
- Meninos Verdes (infantil)
- Meu livro de cordel
- O Tesouro da Casa Velha
- Vintém de Cobre
- A Moeda de Ouro que o Pato Engoliu (Infantil)
- Cora Coragem Cora Poesia (biografia escrita por sua filha Vicência Bretas Than)


Aos 70 anos, decidiu aprender datilografia para preparar suas poesias e enviá-las aos editores.



sábado, 8 de setembro de 2007

Seis mulheres e uma vida


Todas as vezes que me apego a algum livro eu me pergunto sobre a inspiração que levou o escritor a tais palavras ou a se auto - representar metaforicamente de formas tão inusitadas e características. Seus motivos intrínsecos estão quase sempre representados em signos ou arquétipos Junguianos. Cora Coralina também possui a suas representações simbólicas, neste poema fica claro a sua identificação com as mulheres de sua sociedade, ela traça um paralelo entre as figuras destas e de sua própria, se tornando uma única pessoa, assim como sua identificação com as pedras, sementes raízes, morros e é claro com o rio vermelho, ela também se sente como a “cabocla velha acocorada ao pé do borralho”, a lavadeira do rio vermelho e a mulher da vida que finge alegria ao realizar o seu fardo. São todas as vidas de uma época dura, onde as mulheres ainda não tinham muitos direitos e a própria retratação da luta destas mulheres guerreiras esta ligada as muitas vidas de Cora Coralina.


Todas as vidas

Vive dentro de mim

uma cabocla velha

de mau-olhado,

acocorada ao pé do borralho,

olhando para o fogo.

Benze quebranto.

Bota feitiço...

Ogum. Orixá.

Macumba, terreiro.

Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim

a lavadeira do Rio Vermelho.

Seu cheiro gostoso

d'água e sabão.

Rodilha de pano.

Trouxa de roupa,

pedra de anil.

Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim

a mulher cozinheira.

Pimenta e cebola.

Quitute bem feito.

Panela de barro.

Taipa de lenha.

Cozinha antiga

toda pretinha.

Bem cacheada de picumã.

Pedra pontuda.

Cumbuco de coco.

Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim

a mulher do povo.

Bem proletária.

Bem linguaruda,

desabusada, sem preconceitos.

de casca-grossa,

de chinelalinha,

e filharada.

Vive dentro de mim

a mulher roceira

- Enxerto da terra,

meio casmurra.

Trabalhadeira.

Madrugadeira.

Analfabeta.

De pé no chão.

Bem parideira.

Bem criadeira.

Seus doze filhos,

Seus vinte netos.

Vive dentro de mim

a mulher da vida.

Minha irmãzinha...

tão desprezada,

tão murmurada...

Fingindo alegre seu triste fardo.

Todas as vidas dentro de mim:

Na minha vida -

a vida mera das obscuras.


Cora Coralina



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